quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Homem da Cachoeira

Havia um homem que dedicava sua vida inteira a meditar embaixo da cachoeira. Ele deixava a água bater em suas costas enquanto ficava sentado numa pedra com a palma da mão direita apontada para baixo, enquanto a esquerda apontava para cima.
Acreditava que, enquanto ficasse nessa posição, absorvia a energia da Terra com a mão direita e, com a esquerda, a direcionava aos céus, já reciclada. Era um trabalho muito importante, pensava. Já que, através do seu ser, todas as energias impuras (de dor, medo, ódio etc.) podiam ser transmutadas pela sua fé. Dessa forma, todos os excessos eram canalizados cada vez que passavam pelo seu corpo.
Ninguém conhecia o homem. Não tivera, aliás, contato com nenhuma pessoa por sua existência inteira. Mas, mesmo assim, ele dedicava todos os segundos de sua vida a equilibrar a energia dos outros. Não havia reconhecimento ou riquezas em sua jornada, somente sua força inabalável em crer no que sentia ser um propósito correto, mesmo que ninguém lhe tivesse dito isso.
Num dia, com ele já bem velho, a morte surgiu a sua frente. Chegou sua hora, disse ela, pare tudo o que estás fazendo. Sem mexer um músculo do corpo sequer, o homem sorriu sereno. Desculpe minha petulância, sabia dama, mas não vejo ninguém aqui para continuar meu trabalho, respondeu o homem.
A morte sorriu para ele. Dentro de dois anos outro ocupará o seu posto. Homens como você são raros, difíceis de achar. Normalmente, quando essa missão é dada, as pessoas desistem. Pois percebem que deverão abrir mão de todos os prazeres da vida e não serão nem reconhecidas ou aclamadas por isso. É um trabalho que exige muita força e total desprendimento da individualização do ser. Pois se sofre por quem não se conhece, informou a guardiã da vida.
O corpo do homem era, na verdade, tomado por chagas. Estas ardiam e sangravam devido às energias que ele absorvia todos os dias, por todos os segundos. Embora seu espírito as reciclasse, seu corpo padecia às investidas. Estás sobrecarregado. Fizeste mais do que o dobro de sua missão, já que a pessoa escolhida para substituí-lo não teve êxito em seus propósitos iniciais. Peço-lhe desculpas por não ter vindo antes. Pois sei o quanto sofreste em vida, reconheceu a morte.
O homem sorriu. Faz um tempo que não sofro mais. Parei de me importar com isso. Aprendi que se virasse meu pescoço, as dores aumentavam. E que se eu não me focasse na minha missão e divagasse sobre possibilidades não concretas da minha vivência, as dores também aumentavam. Deixei de pensar em bobagens e olhar para os lados e a dor simplesmente sumiu, informou o homem.
O ser humano me surpreende às vezes, mas só quando deixa de ser acomodado, brincou a morte. Vamos¿ Libertar-te-ei do corpo e não haverá mais fraqueza em teu ser. O homem, em sua serenidade inabalável, respondeu: -“Se a senhora me permitir, gostaria de ficar por mais dois anos. Se houver um hiato nesta minha humilde função, os homens se sobrecarregarão e suas vidas ficarão mais difíceis”.
 Esse tempo foi calculado pelo alto como aceitável em sua função. Não deves te preocupar mais com isso. Subirás aos céus e terás tua redenção livre da jornada humana. Santificaste-te. Descansarás guardado no templo dos justos, disse a morte. Agradeço a oferta e fico feliz em saber o que me aguarda do outro lado. Mas não devo morrer enquanto alguém não vier tomar o meu lugar, retrucou o homem.
A morte sorriu novamente. Como quiseres, disse. E sumiu.
O homem refletiu sobre tudo o que ouvira. Nunca esperara algo em troca ou redenção. Simplesmente vivia em sua fé. Mas agora estava certo de seu caminho e de seu futuro. Percebeu-se feliz e radiante. E numa liberdade que nunca se permitira tomar, abaixou seus braços cansados e contemplou o entorno.

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