quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Achados e Perdidos

Num hospital, um homem acorda numa cama, totalmente abatido e ferido. Há escoriações no rosto e nos braços. Seu semblante revela machucados psicológicos maiores. Ainda tonto e com dor de cabeça, ele se levanta com dificuldade e se dirige ao corredor do hospital, este, totalmente vazio. Ele chega ao elevador, também vazio, e aperta o botão referente ao andar térreo. Após, percebe que a luzinha do botão do sexto andar está acesa. O elevador, então, sobe.
Quando a porta se abre uma ventania o abraça. Colocando a mão em frente ao rosto, tentando proteger os olhos do vento, o homem percebe que o andar está na mais profunda escuridão. Tomado pela curiosidade, ele sai e vê, um pouco distante, um letreiro luminoso, representando a única luz daquele local. A porta, atrás de si, repentinamente se fecha. Tentando bater, na esperança de não perder a viagem e ter de ficar naquele ambiente escuro e, talvez, hostil, por mais um tempo, o ocasional visitante, ao ver que seus esforços eram inúteis, abaixa seus braços e desiste. Ao virar-se e encarar novamente aquele estranho lugar, o homem decide se aproximar daquele letreiro ainda ilegível.
Tateando cuidadosamente as paredes lisas, sem portas ou janelas, e se aproximando na ponta dos pés, com extremo cuidado, o visitante consegue, enfim, ler os rabiscos de luz: “Achados e Perdidos”. Sorrindo, numa mistura de auto-deboche e alívio, o homem tateia a porta embaixo do letreiro e gira a maçaneta.Um luz invade a escuridão. Protegendo seus olhos, o homem entra no recinto.
A sala compreende um balcão, e atrás dele, estantes e prateleiras acomodam organizadamente uma infinidade de objetos. No local há um senhor de cabelos e barba brancos fechando rapidamente algumas maletas, fazendo com que a forte luz que sai delas se guarde e torne o ambiente visível. O velho, então, tira seus óculos escuros e sorri.
Seja bem vindo meu jovem, o que o traz aqui¿, indagou. O senhor me desculpe, ainda estou um pouco tonto, e na tentativa de sair deste hospital, acabei chegando aqui. O homem continuou: - “A verdade é que passei por emoções fortes e acabei sofrendo um acidente. Estou desesperado, só quero ir para minha casa.
O velho, mostrando serenidade e compaixão, enquanto coçava sua barba, falou: -“Entendo. As pessoas normalmente vêm ao “achados e perdidos” desesperadas, confusas. Pois acreditam que não acharão mais seus objetos de valor. Muitas vezes chegam aqui aos prantos! Mas se elas encontram o que perderam, acabam voltando mais tranqüilas para casa. Embora a maioria se satisfaça em levar coisas que não procura, mas, de alguma forma, aquilo faça sentido naquele momento. O certo é que ninguém sai daqui de mãos abanando”.
Confesso que nunca tivera num “achados e perdidos” antes, porque, normalmente, quando eu perco alguma coisa, simplesmente compro outra e me contento em substituí-la, constatou o homem. É o que as pessoas costumam fazer, respondeu o velho, e isso deveras me incomoda, porque me torno praticamente inútil e esquecido aqui. Mas como não me permito me entregar à tristeza, tomo meu tempo reorganizando, limpando e polindo os objetos que chegam até mim. Desculpe minha sinceridade, interrompeu o visitante, mas creio que não conseguiria viver trabalhando num lugar como este. Deve ser entediante! Além do mais, sentir-me-ia um inútil na vida em guardar pertences esquecidos pelos outros. Isso sem falar na questão financeira!
O velho, numa gargalhada sábia, observa o homem dos pés à cabeça, antes de retrucar: -“É aí que o senhor se engana, meu jovem. Meu trabalho é de imenso valor e responsabilidade. A importância das coisas não é medida pelo valor que o ser humano dá a elas. E mesmo assim, irias te surpreender com as relíquias, de valor inestimável (!), que chegam a mim todos os dias”. Levemente contrariado o homem conclui: -“Então o senhor é um tolo, pois poderia ter uma vida muito mais tranqüila e feliz se vendesse algumas dessas jóias, afinal, ninguém as procura mesmo! Isso nem o faria um ladrão”...
Saindo de sua natural serenidade, o velho levanta o tom: -“Tolice a tua achar que felicidade ou tranqüilidade são coisas encontradas em prateleiras! Tenho certeza que não conseguiria dormir uma só noite se ficasse com algum pertence alheio. Além do mais, não pense que sou um homem pobre por trabalhar num lugar como este. Muito pelo contrário! Depois de muito tempo, compreendi quase que naturalmente o vazio que dá uma coisa ignoramos ou deixamos para trás. Minhas relíquias dormem comigo, em minha casa, não aqui”.   
Percebendo o significado das palavras daquele estranho senhor, o homem se desculpa. Não tem problema, disse o velho, mudando novamente seu semblante para um olhar compreensivo e sereno, és jovem! E, ao contrário do que dizem, a visão dos velhos costumas ser mais apurada.
Envergonhado, ainda, o homem aceita conhecer o ambiente e os objetos ali deixados.
Como podes ver, há mais coisas esquecidas aqui dentro do que lembradas lá fora. E continuou o velho: -“Tenho uma teoria que sugere que se todas as salas como esta estivessem vazias, o mundo não sofreria de dores ou saudade”. E abriu uma das maletas organizadas na estante, sem antes entregar ao visitante um par de óculos escuros.
Uma luz ofuscante surge de dentro da simples valise. Encantado e espantado ao mesmo tempo, o homem se surpreende ao ver pedras tão grandes. São diamantes! Bradou extasiado. Sim, os maiores e mais puros que alguém jamais viu. Como podes ver, a luz que havia quando chegaste, nada mais era do que o reflexo das pedras preciosas guardadas nessas maletas. Há centenas delas, informou o velho.
Abismado com tamanha beleza, o homem começa a se sentir mal. Uma dor de cabeça e uma tontura perturbam seu corpo. O senhor, calmo e sereno, o ajuda a sentar. Tentando compreender o que se passava, o visitante arfava e não conseguia transmitir uma palavra sequer. Trazendo um copo d água, o velho falou: - “Não fraqueja agora. Se teu estado piorar, terás de voltar para aquela sala de hospital. Então não poderás conhecer este ambiente e, quando estiveres recuperado, possivelmente não poderás voltar. Pois minha sala estará fechada. Como assim¿, desesperado, pensei que o “achados & perdidos” funcionasse todos os dias!
E funciona!, retrucou o velho, mas só o abrimos em caso de extrema necessidade. Como pudeste constatar, há coisas muito valiosas aqui, que podem ser roubadas. Por haver gente que gosta do que é dos outros, tomo o máximo cuidado para que ninguém usurpe as preciosidades alheias. Uma mistura de vergonha e compreensão acalmaram o homem. Vendo-o recuperado para a “jornada”, o velho ajuda-o a levantar.
Nunca imaginei que um lugar como este escondesse objetos tão valiosos. O velho retomou a palavra. Se pensares com calma, verás que a própria condição humana, em sua busca incessante por realizações, nos leva a dois pontos: o que eu sou, e onde eu quero chegar; esquecendo que há um caminho a ser percorrido para que esses pontos um dia, talvez, se liguem. Os objetos aqui guardados nada mais são que objetos que deixamos pelo caminho enquanto nos distraímos olhando para cima, em vez de olharmos para dentro. No fundo, as coisas que perdemos, ou deixamos de lado, são como essas pedras: algo de valor inestimável; nossa humanidade...
O homem, reflexivo, desconfia pela primeira vez do dono do "achados e perdidos". O senhor não é um simples senhor!, desafiou. O velho, com um olhar capcioso riu. Simples eu sou, como podes ver. E não faço a barba porque me dá alergia!, e continuou, mas tenho meus talentos...
O senhor quer dizer que tem uma sabedoria oculta. Uma espécie de magia?!, em outra investida. O velho não se conteve em dar uma risada gostosa: -"Magia? Não, não. Referia-me em ser ótimo no arco e flechas.
- ... 
Porque me olhas assim? Por acaso não posso ser um bom arqueiro?, ironizou o velho. Percebendo que não tiraria mais nada daquela misteriosa figura, o homem acalmou sua ansiedade e deslocou o olhar para o resto da sala. Finalmente um objeto vulgar! Ora, ora, algo simples como um binóculo não deveria estar aqui, disse o visitante.
Não entendo sua surpresa, afinal de contas, estamos numa sala de "achados e perdidos". E saiba que aqui chegam mais binóculos do que guarda-chuvas em tardes de arco-íris. É mesmo?, perguntou o homem. E continuou: "- Achei que o guarda-chuva fosse o campeão, afinal, todos se lembram dele na chuva, mas o esquecem nos dias de sol. Minha mente não consegue entender como um binóculo, de uso tão específico!, pode ser a maioria.
A resposta é muito simples: todos sabem a função do guarda-chuva! Enquanto que o binóculo a maioria das pessoas não sabem para que serve. Mas isso é ridículo!, interrompeu o homem, todos sabem para que serve um binóculo. É para conseguir ver o que se está ao longe!
O velho, colocando dedos em frente aos lábios, tentando segurar outra gargalhada, virou o rosto. Qual é! Está me tirando para idiota? Eu mesmo já tive um. Fui escoteiro saiba o senhor!, falou o homem indignado ao ver sua inteligência posta à prova.
Desculpa-me, meu jovem. Não quis ofendê-lo. Mas acontece que, assim como é o objeto de maior perda, também é o de maior procura. Normalmente,quem vem atrás do seu binóculo, são pessoas que acabaram de entender sua real função. Basicamente são pessoas velhas e frustradas, embora muito ricas, na maioria das vezes.
Não compreendo, disse ao velho. Observando essas pessoas pude entender o seu padrão e, dessa forma, pude perceber para que realmente serve um binóculo. Pausando, o dono do estabelecimento observou seu interlocutor por alguns intantes.
Veja bem. Um binóculo não serve necessariamente para enxergar o que se está ao longe. Ele serve simplesmente para ampliar nossa percepção visual. O ser humano, com toda sua petulância e soberba, não se permite investigar o que se tem por perto. Ele mira seu binóculo para os céus e projeta alcançar o que não lhe compete. Assim, como sempre, não valoriza nem domina o que se encontra embaixo do seu nariz ou entre suas mãos, preferindo entrar numa busca doentia e desenfreada pelo inalcançável. Obviamente, como pude concluir com meus olhos, essas pessoas, embora tenham conquistado tudo o que acreditam ser necessário às suas vidas, percebem-se, quando a morte bate à porta, detentores do mais imenso vazio. Logo, um binóculo não tem serventia alguma para quem quer ter a ilusão de "se estar perto". Ele serve, realmente, para nos fazer enxergar aquilo que não damos importância por achar que já possuímos.
Subitamente o homem tem uma vertigem e cai. Segurando a cabeça entre as mãos ele chora num estado de choque. O velho, com profunda calma e compaixão, senta-se ao lado do visitante e o aconchega cuidadosamente em seu regaço.
Meu jovem, estamos conversando há algum tempo e não disseste o que te trouxe ao hospital. Gostarias de falar a respeito? Com um olhar de ansiedade desesperadora, o homem encara a paternal figura. Creio que não gostaria de compartilhar o que passei com ninguém. Se pudesse, colocaria uma pedra nisso para sempre. Mas, de alguma forma, com o senhor, e neste lugar, talvez eu consiga dividir essa experiência que me perturba. Com o olhar perdido no horizonte o velho medita a respeito da situação. Pelo que vejo não vieste parar aqui por acaso.
O homem, com peso nos lábios, riu. Aqui, pelo que entendi, só vêm parar coisas importantes. Creio que eu não tenha nada de valioso para achar num lugar como este, constatou. Novamente o senhor se engana. Todos temos algo de valor em nossas vidas! O problema é que, quase sempre, descobrimos isso tarde demais, ou olhamos da forma errada. A dor, o sofrimento, são conceitos estabelecidos sob parâmetros humanos. É quando vemos um copo meio vazio em vez de meio cheio. A dor, na verdade, é a ignorância de não entender o amor que a vida é.
E se iniciou um choro de redenção. Minha primeira e única mulher me deixou depois de sete anos. Inconformado, invadi sua casa na noite anterior e a vi com um "amigo" dela. Eles estavam apenas conversando, mas fui tomado por um sentimento de ódio por aquilo tudo. Lembro que saí esbravejando pelo meio da rua e um carro me atropelou.
Depois da declaração veio o suspiro. e o choro foi cessando. O velho, depois de ouvir tudo sem julgamentos, alcançou, ainda sentado, um caleidoscópio. Depois de observá-lo, sorriu.
Um pouco antes de chegares, trouxeram-me este caleidoscópio. Um brinquedo muito sabido que nos ensina que, girando a luneta, podemos criar diferentes realidades e sentidos com as mesmas pedrinhas. Aposto meu minguinho que este objeto precioso seja teu. Com ele, reaprenderás a observar, por diferentes lados, até as situações mais difíceis. Possivelmente, assim que pegares um pouco de prática, voltarás a ver a vida com mais otimismo: como uma criança!
Encantado e sereno depois de ouvir tais palavras, o homem estende os braços e recebe seu objeto perdido: Aquele que transforma o sofrimento em esperança. Agradecido, o visitante abraça o senhor mais simples e sábio que jamais conhecera, e promete para si que não mais perderá seu caleidoscópio.
O homem se levanta, já sem dores ou tonturas, para ir para casa. O velho, porém, antes de deixá-lo ir, convida-o para conhecer sua sala secreta. Os dois se dirigem a um ambiente localizado nos fundos do “achados e perdidos”.
Ao entrar, o homem sente um calor sufocante. A sala compreende um corredor largo onde, à esquerda de quem entra, há uma parede com vários alvos enfileirados; à direta, a parede é lisa. No limite, ao fundo, há um ventilador desligado. O velho, sem dar muita importância à temperatura elevada, alcança seu arco. O homem, por sua vez, caminha em direção ao ventilador e tenta ligá-lo.
Há um mau contato nas tomadas deste lugar e faz com que o ventilador não funcione sempre. Mas, normalmente, quando quero passar o tempo treinando minha pontaria, ele subitamente começa a funcionar e seus ventos interferem no curso das minhas flechas. Como podes ver, somente em uma ocasião os ventos não sopraram e, então, consegui atingir o alvo em cheio. Somente uma flecha! E isso já faz sete anos... Desde então não tive mais êxitos na minha pontaria – informou o velho.
Estranhando aquele arqueiro sem talentos e o absurdo daquela situação, o homem, como num gesto de agradecimento por tudo o que ocorrera com ele naquele lugar, encorajou seu novo amigo a dar mais uma flechada.
Por todo aquele tempo o dono do “achados e perdidos” estivera sereno e seguro, porém, diante daquela situação, o homem pôde ver, enfim, um traço de insegurança e incerteza no rosto do velho.
Não se preocupe, estarei na frente do ventilador. Nada poderá atrapalhar o senhor – disse o homem. Dotado de toda sua força e coragem o velho mira e atira sua flecha.
...
Acordando serenamente na cama do hospital, o homem se depara com uma enfermeira linda. Ele, mesmo imobilizado, sorri. Ela retribui.

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