domingo, 9 de outubro de 2011

A Casa do Lu



Acabara de receber uma promoção. Por toda sua vida trabalhara na gerência de uma multinacional automotiva e agora, finalmente, elevaria seu cargo na empresa. Era a realização de um sonho. A grande meta que traçara estava alcançada. Sua ansiedade era tanta que não conseguia nem repousar durante aquele vôo noturno rumo à matriz. Pensava na família; todos estavam radiantes em sua despedida no aeroporto. 
Sua esposa, que nunca chorava na frente dos outros, soluçava no saguão. Roupas, perfumes, viagens, jóias! seriam acessíveis agora, com seu novo status. A filha não parava de falar ao telefone, combinando compras e eventos da alta sociedade com amigas inacessíveis antigamente. O filho só lhe disse um “posso encomendar o Viper¿” antes da partida, sem esconder o sorriso. Todos estavam muito felizes e realizados com a promoção. Obrigado Deus, pensou o homem.
Pediu um whisky, já que era possível e, agora, necessário, por estar na primeira classe. Sentado numa poltrona ultra-confortável e com um ambiente cheio de regalias, o homem contrastava dos demais passageiros. Tornara-se poderoso e respeitado. Conquistara aquilo!
Lembrou-se de seu histórico na empresa. Todas as reuniões, noites sem dormir, projetos, burocracias, politicagens e, principalmente, de sua maior façanha: o desenvolvimento do motor mais forte dentre as marcas. Esse fato, inclusive, rendeu-lhe o apelido de “roncador” dentro da empresa. Finalmente adormeceu, pensando no quanto abdicara de si, em sua vida inteira, focando-se somente no trabalho, para que, finalmente, chegasse aquele momento.
Quando acordou o avião já estava em solo. A comissária abriu-lhe um sorriso e lhe desejou boas vindas. Agradecendo, o homem se dirigiu à sala de desembarque. Lá o esperavam dois homens trajando ternos muito finos e gravatas reluzentes. Seja bem vindo, falaram-lhe em coro. Como foi a viagem¿ indagou o homem de olhos claros. Tranqüila, muito obrigado, embora o serviço de bordo esteja cada vez pior, brincou.
Os três entraram num carro de alto luxo que se encontrava numa das vagas especiais do aeroporto. De lá, iriam primeiro a um flat, acomodar o viajante, e depois todos seguiriam à sede da empresa.
O quarto do homem ficava no último andar da torre mais alta de um conjunto de sete, que consistia as instalações do flat. No andar térreo havia um cassino, onde milionários torravam seu dinheiro todos os dias. Mulheres lindas e elegantíssimas desfilavam seus vestidos e jóias pelo ambiente. Mas sem tempo para isso, ainda, o homem tratou de acomodar suas bagagens no quarto e tomou um banho rápido. Na televisão, um programa jornalístico noticiava a queda de um avião. Enquanto ouvia a notícia sem dar muita importância, arrumava o nó de sua gravata e empunhava seu relógio.
Antes de sair, respirou fundo para conter sua euforia, vislumbrando novamente aquele enorme aposento com móveis banhados a ouro e chão de mármore. Ao bater a porta, a televisão e as luzes se desligaram automaticamente.
O carro o esperava em frente à torre. O homem de olhos mais escuros fumava encostado no capô, enquanto o outro o esperava dentro do automóvel. Se continuares fumando, vais roncar mais que os motores que eu invento!, brincou, se aproximando. Impossível senhor, respondeu. E entraram no carro.
O caminho foi recheado de conversas triviais e sem propósito. Na verdade, o homem pouco estava interessado em conversas, já que se encontrava ansioso e nervoso diante da situação de conhecer o criador e representante mundial de toda a estrutura da qual dedicara sua vida. Ao chegar, foi tomado por um sentimento de surpresa. É aqui¿, perguntou. Na verdade aqui é simplesmente uma das casas do Lu. A empresa é muito grande e sua força está nos núcleos ao redor do mundo. A matriz é somente a geradora de idéias. A sustentação vem das pessoas que trabalham nela, respondeu o de olho claro, vamos¿ e desceram os três.
Era notável o desconforto do homem em relação àquela situação. A casa do Lu, o grande chefe de tudo, não passava de um palacete branco com pilastras que lembravam as da antiga Grécia. Não havia seguranças ou grandes muros, somente uma fonte onde anjinhos não paravam de derramar água de seus cântaros. Ele está te esperando, informou o homem de olhos escuros, ficaremos aqui.
Tentando ainda se recompor, o homem entrou na casa. Ao vislumbrar o ambiente, pôde ver um salão redondo luxuosíssimo. Os móveis pareciam franceses, verdadeiras relíquias históricas; os tapetes eram belíssimos e os mosaicos de vidro davam um ar quase sobrenatural ao lugar. O que a casa tinha de clareza e sobriedade por fora, era compensada pelo extremo capricho, riqueza e bom gosto por dentro.
Uma música vinha de um piano que se encontrava em algum outro ambiente da casa. Quando a música parou, um pequeno menino cortou o salão e veio ao encontro do homem. Muito bom dia, senhor “roncador”. Muito bom dia, respondeu o homem, estendendo a mão à da criança. Meu pai disse que, quando eu crescer, terei um carro com um motor igual ao que o senhor criou. Lisonjeado, abrindo um sorriso paternal, respondeu: -“Eu espero que sim”. Eram palavras muito significativas, afinal, seu trabalho era reconhecido inclusive pelo filho do dono da empresa.
Antes mesmo dos dois continuarem algum diálogo, o som de passos cortou o breve silêncio. Ao alto da escadaria, um senhor, nem tão velho assim, vestindo um smoking branco e fumando um charuto, fez as honras: -”Seja bem vindo, famoso roncador. É um prazer conhecê-lo”, e desceu. O prazer é todo meu, Lu.
Os homens se cumprimentaram e se acomodaram nos sofás. Sente-se aqui, meu filho, o papai precisa conversar com esse moço, disse. Servindo-se de um chá previamente preparado para o encontro, o grande chefe não fez cerimônias.
Seus trabalhos não passaram despercebidos por mim. Há anos tenho o observado e admirado seus esforços em prol dos ideais da empresa. Fico muito contente e satisfeito quando as sementes por mim plantadas dão frutos tão visíveis como no seu caso. O melhor ainda, é que mesmo com a influência e poder que o senhor alcançou trabalhando para mim, manteve-se fiel aos meus propósitos. Sua retidão é admirável!
Agradeço seus elogios, Lu. Sempre fui um homem com grandes pretensões. Vi na sua empresa uma possibilidade de crescimento pessoal e financeiro e agarrei com unhas e dentes. Não queria viver em dificuldades, sem poder realizar os meus sonhos e os da minha família. Ser mais um nunca fez parte dos meus planos.
O poderoso homem ouvia com atenção as palavras do outro enquanto tragava a fumaça de seu charuto. Seus olhos não conseguiam esconder seu entusiasmo. Vejo que é a pessoa certa para o posto. O senhor tem todos os atributos para ser um grande líder. Por isso, gostaria de contar um pouco da minha história e de como montei essa empresa. Tomando um breve gole de chá, Lu inicia seu relato:
- Quando era jovem, há muito tempo atrás, observando a vida do ser humano, percebi que eu não me adequava ao modo de convivência das pessoas. Achava-as muito passivas e indefesas. Eram muito reféns de sua própria ignorância e das coisas da natureza. Aquela realidade trazia empecilhos para mim, pois não me achava livre e dependia dos outros para sobreviver. As realizações só vinham com muito custo e tudo era compartilhado, ao ponto de ficar muito pouco para cada indivíduo. Mas eu queria mais. Por isso, decidi sair do meu povoado e daquela realidade que tanto me descontentava.
No começo foi muito difícil, pois teria de conquistar habilidades que eram de responsabilidade de outras pessoas. Por exemplo: tive que aprender a caçar, já que estava cansado de comer as plantas que cultivava, aliás, esta era a minha função no povoado. Embora tivesse fartura de vegetais, outras opções de alimento me faltavam. E em pouco tempo virei um exímio caçador de cordeiros.
Depois de já adaptado àquela vida, percebi-me feliz, pois havia fartura e opções de consumo para mim. Entendi, num dia sentado embaixo de uma árvore, que minha felicidade advinha da minha capacidade de manipular e criar minha realidade. Refleti muito e constatei que a realização do ser humano estava intimamente ligada ao poder. Sozinho, passei, então, a subjugar os cordeiros que caçava. Em pouco tempo tinha um rebanho enorme de criaturas que dependiam de mim para manter suas vidas. O cercado impedia que o rebanho pudesse se alimentar naturalmente e fazia com que eu fosse sua única forma de sobrevivência. Então, vi-me poderoso quando tirei a liberdade deles e os dei a ilusão de que eu era sua única fonte de alimento.
O homem estava impressionado com a história de seu chefe. Perdia-se em conjeturas, mas não conseguia nem imaginar a idade daquele senhor. Será que vivera numa sociedade atrasada¿ Onde seria esse povoado¿ Que inteligência a daquele homem sentado a sua frente! Serviu-se de chá enquanto o Lu continuava seu relato:
- Depois de uns anos, retornei ao meu antigo povoado vendendo a carne mais saborosa e as roupas de pelagem de maior qualidade que eles já haviam visto. Obviamente lucrei muito com isso, me ofereceram seus melhores produtos e suas melhores casas em troca da minha mercadoria. Tornei-me cada vez mais poderoso perante aqueles homens conforme eles dependiam cada vez mais dos meus produtos.
Como pode ver, meu querido roncador, pouco a pouco, todos os habitantes do lugar reconstruíram seu modo de viver baseado nos meus parâmetros.
Depois de um tempo, cansei de criar cordeiros e passei a criar cavalos. E depois, quando todo o mercado estava sob meus domínios, passei a criar idéias, e assim, a cultivar humanos.
Um frio percorreu a espinha do homem. Aquilo, colocado de uma forma tão fria e segura, gerava uma sensação de estranheza e admiração pela figura do chefe. Aquilo era realmente certo¿, pensou. O Lu, ao perceber o confronto interno transparecido nos olhos de seu interlocutor, sorriu. Calma, não sou um homem mau. Simplesmente não sou hipócrita. No fundo, todos buscam a felicidade e não sabem onde encontrá-la. Eu, basicamente, traduzo esse anseio em produtos que, por um tempo limitado, cumprem essa função. E, estando sempre um passo a frente de todos, quando a carência bate novamente a porta do ser humano, lá estou eu com uma nova projeção de felicidade sob forma de produto.
A noite e o frio chegavam à casa. Passou tanto tempo ouvindo aqueles relatos que perdeu a noção do horário. Gostaria que ficasse para o jantar, roncador, a comida da Dora é maravilhosa. Ô se é!, interrompeu o menino. Agradeço a oferta,Lu, assim poderei continuar ouvindo sua história e podemos conversar a respeito da minha nova função também.
Os três se levantaram e se dirigiram à sala de jantar. Mesmo reflexivo, o homem não pôde deixar de notar a beleza do enorme lustre acima da mesa. Gostou¿, devo tê-lo há mais de séculos!, brincou o chefe que não deixava passar nada despercebido por seus olhos. Assim que sentaram, Dora, uma linda mulher de cabelos longos e negros, trouxe a refeição numa louça de prata. Abrindo a tampa, o cheiro do cordeiro invadiu o ambiente. Hum!, exclamou a criança, adoro esse prato! Eu também, meu filho. Embora eu seja suspeito para falar de qualquer coisa que a Dora faça.
Agradecendo ao patrão, a mulher trouxe o vinho e serviu os cavalheiros da mesa. O menino foi servido de água. Ao provar da carne o homem não conseguiu esconder seu encantamento. Essa é a carne mais deliciosa que eu já comi em toda a minha vida!Juro! Lu deu uma risada alta. Eu não te falei, ela é uma cozinheira de mão cheia! Embora, devo confessar, eu a ajude um pouquinho em trazer a carne mais macia que já vira. E qual seria o segredo para ter uma carne como essa¿, perguntou o homem. Lu chegou perto, aproximando-se, como quem contasse algo muito valioso: - “O segredo é dopar os cordeiros antes do abate. Assim, quando se dão conta, já estão mortos”. E os dois gargalharam na mesa.
Filho, essa carne não esta maravilhosa¿ O menino, de boca cheia, sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. Esta vendo, roncador, o que seduz uma criança seduz o mundo inteiro, de uma forma ou de outra!, constatou. Já te falei que também tenho empresas no ramo de brinquedos¿ ... Pois é, a automobilística é somente um dos meus ramos de atuação. Tenho participação em empresas de petróleo, farmácia, eletrônicos, moda, entretenimento, alimentos, além de bancos e da mídia, claro.
O homem quase se engasgou com o vinho. Possivelmente estava jantando com um dos homens mais poderosos e influentes do mundo. Se não o maior! Lu, eu estou lisonjeado em poder conhecer um homem como o senhor e ter a sua confiança, disse o homem. Tudo o que projetara com aquela promoção poderia ser multiplicado por mil, por um milhão (!). Não se subestime, roncador. Graças ao seu invento eu dominarei o mercado de automóveis. E graças ao seu ronco, eu venderei mais petróleo, porque aumentará o consumo de combustível. Isso dará a ilusão de força e poder aos homens e, assim, colocando algumas figuras de Hollywood defendendo minha marca, poderei influenciar nas tendências comportamentais humanas e lucrar bilhões com seu invento.
O brilho nos olhos do homem podia ser contemplado há quilômetros. Aquilo era muito poder. O Lu era um visionário e sabia manipular a humanidade conforme sua vontade. E ele, um simples mortal, estaria ao seu lado nessa empreitada. Alias, sempre estivera, mesmo sem perceber; toda a humanidade, inclusive! Todos os inventos, todas as teorias, todos os governos, absolutamente todos trabalhavam direta ou indiretamente para aquele homem que se lambuzava com a carne de cordeiro.
Quem é você, Lu¿ Como pode ter tanto poder¿, indagou. Eu sou aquele que preenche a carência humana com suas próprias criações. Eu sou o reflexo de suas fraquezas, de suas angústias, de seus anseios, de seus descontentamentos: de sua própria ignorância. Eu estou em todas as vertentes do ego, aquele que crê que o ser humano pode ser Deus. E vendo essa panacéia de ilusões a preços caros, pois as pessoas passam a viver sob minhas regras, que estão longe da perfeição. E dando relativa liberdade aos seres, eu lhes dou a possibilidade, a todo o instante, da escolha, que sempre acaba pendendo para o lado do orgulho: para os meus domínios, respondeu o chefe.
Mas isso é heresia!, exclamou o homem. Eu sou um simples comerciante. Um sujeito oportunista que está na hora certa e no lugar certo, pronto para vender o máximo que eu posso criar: uma simples ilusão. Como eu lhe disse antes, não sou um homem mau, pois não obrigo ninguém a nada. Creio que eu seja mais um vizinho bom: aquele que parece que não existe, mas sempre estende os braços quando você bate à porta. E também não sou nenhuma figura superior. Sou humano, pois não dou nada a ninguém. Eu vendo!, declarou o Lu.
Aquelas palavras atingiram em cheio o homem. Por todas as suas ações, ficara íntimo daquele que se permitia ser chamado por ele apenas de “Lu”. Veio o choro e veio o desespero. O homem caiu da cadeira em posição fetal e gritou. Culpa, dor e desespero invadiram sua mente. O Lu e a criança terminavam a refeição em silêncio, como se ignorassem a situação. Toda a projeção daquela sala de jantar ruiu, dando espaço a um palácio negro e gelado. A solidão tomou conta de tudo.
O homem, finalmente, como sempre buscou, estava individualizado.
...
Dentre os destroços do avião, no fundo do mar, jazia o corpo do homem.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Achados e Perdidos

Num hospital, um homem acorda numa cama, totalmente abatido e ferido. Há escoriações no rosto e nos braços. Seu semblante revela machucados psicológicos maiores. Ainda tonto e com dor de cabeça, ele se levanta com dificuldade e se dirige ao corredor do hospital, este, totalmente vazio. Ele chega ao elevador, também vazio, e aperta o botão referente ao andar térreo. Após, percebe que a luzinha do botão do sexto andar está acesa. O elevador, então, sobe.
Quando a porta se abre uma ventania o abraça. Colocando a mão em frente ao rosto, tentando proteger os olhos do vento, o homem percebe que o andar está na mais profunda escuridão. Tomado pela curiosidade, ele sai e vê, um pouco distante, um letreiro luminoso, representando a única luz daquele local. A porta, atrás de si, repentinamente se fecha. Tentando bater, na esperança de não perder a viagem e ter de ficar naquele ambiente escuro e, talvez, hostil, por mais um tempo, o ocasional visitante, ao ver que seus esforços eram inúteis, abaixa seus braços e desiste. Ao virar-se e encarar novamente aquele estranho lugar, o homem decide se aproximar daquele letreiro ainda ilegível.
Tateando cuidadosamente as paredes lisas, sem portas ou janelas, e se aproximando na ponta dos pés, com extremo cuidado, o visitante consegue, enfim, ler os rabiscos de luz: “Achados e Perdidos”. Sorrindo, numa mistura de auto-deboche e alívio, o homem tateia a porta embaixo do letreiro e gira a maçaneta.Um luz invade a escuridão. Protegendo seus olhos, o homem entra no recinto.
A sala compreende um balcão, e atrás dele, estantes e prateleiras acomodam organizadamente uma infinidade de objetos. No local há um senhor de cabelos e barba brancos fechando rapidamente algumas maletas, fazendo com que a forte luz que sai delas se guarde e torne o ambiente visível. O velho, então, tira seus óculos escuros e sorri.
Seja bem vindo meu jovem, o que o traz aqui¿, indagou. O senhor me desculpe, ainda estou um pouco tonto, e na tentativa de sair deste hospital, acabei chegando aqui. O homem continuou: - “A verdade é que passei por emoções fortes e acabei sofrendo um acidente. Estou desesperado, só quero ir para minha casa.
O velho, mostrando serenidade e compaixão, enquanto coçava sua barba, falou: -“Entendo. As pessoas normalmente vêm ao “achados e perdidos” desesperadas, confusas. Pois acreditam que não acharão mais seus objetos de valor. Muitas vezes chegam aqui aos prantos! Mas se elas encontram o que perderam, acabam voltando mais tranqüilas para casa. Embora a maioria se satisfaça em levar coisas que não procura, mas, de alguma forma, aquilo faça sentido naquele momento. O certo é que ninguém sai daqui de mãos abanando”.
Confesso que nunca tivera num “achados e perdidos” antes, porque, normalmente, quando eu perco alguma coisa, simplesmente compro outra e me contento em substituí-la, constatou o homem. É o que as pessoas costumam fazer, respondeu o velho, e isso deveras me incomoda, porque me torno praticamente inútil e esquecido aqui. Mas como não me permito me entregar à tristeza, tomo meu tempo reorganizando, limpando e polindo os objetos que chegam até mim. Desculpe minha sinceridade, interrompeu o visitante, mas creio que não conseguiria viver trabalhando num lugar como este. Deve ser entediante! Além do mais, sentir-me-ia um inútil na vida em guardar pertences esquecidos pelos outros. Isso sem falar na questão financeira!
O velho, numa gargalhada sábia, observa o homem dos pés à cabeça, antes de retrucar: -“É aí que o senhor se engana, meu jovem. Meu trabalho é de imenso valor e responsabilidade. A importância das coisas não é medida pelo valor que o ser humano dá a elas. E mesmo assim, irias te surpreender com as relíquias, de valor inestimável (!), que chegam a mim todos os dias”. Levemente contrariado o homem conclui: -“Então o senhor é um tolo, pois poderia ter uma vida muito mais tranqüila e feliz se vendesse algumas dessas jóias, afinal, ninguém as procura mesmo! Isso nem o faria um ladrão”...
Saindo de sua natural serenidade, o velho levanta o tom: -“Tolice a tua achar que felicidade ou tranqüilidade são coisas encontradas em prateleiras! Tenho certeza que não conseguiria dormir uma só noite se ficasse com algum pertence alheio. Além do mais, não pense que sou um homem pobre por trabalhar num lugar como este. Muito pelo contrário! Depois de muito tempo, compreendi quase que naturalmente o vazio que dá uma coisa ignoramos ou deixamos para trás. Minhas relíquias dormem comigo, em minha casa, não aqui”.   
Percebendo o significado das palavras daquele estranho senhor, o homem se desculpa. Não tem problema, disse o velho, mudando novamente seu semblante para um olhar compreensivo e sereno, és jovem! E, ao contrário do que dizem, a visão dos velhos costumas ser mais apurada.
Envergonhado, ainda, o homem aceita conhecer o ambiente e os objetos ali deixados.
Como podes ver, há mais coisas esquecidas aqui dentro do que lembradas lá fora. E continuou o velho: -“Tenho uma teoria que sugere que se todas as salas como esta estivessem vazias, o mundo não sofreria de dores ou saudade”. E abriu uma das maletas organizadas na estante, sem antes entregar ao visitante um par de óculos escuros.
Uma luz ofuscante surge de dentro da simples valise. Encantado e espantado ao mesmo tempo, o homem se surpreende ao ver pedras tão grandes. São diamantes! Bradou extasiado. Sim, os maiores e mais puros que alguém jamais viu. Como podes ver, a luz que havia quando chegaste, nada mais era do que o reflexo das pedras preciosas guardadas nessas maletas. Há centenas delas, informou o velho.
Abismado com tamanha beleza, o homem começa a se sentir mal. Uma dor de cabeça e uma tontura perturbam seu corpo. O senhor, calmo e sereno, o ajuda a sentar. Tentando compreender o que se passava, o visitante arfava e não conseguia transmitir uma palavra sequer. Trazendo um copo d água, o velho falou: - “Não fraqueja agora. Se teu estado piorar, terás de voltar para aquela sala de hospital. Então não poderás conhecer este ambiente e, quando estiveres recuperado, possivelmente não poderás voltar. Pois minha sala estará fechada. Como assim¿, desesperado, pensei que o “achados & perdidos” funcionasse todos os dias!
E funciona!, retrucou o velho, mas só o abrimos em caso de extrema necessidade. Como pudeste constatar, há coisas muito valiosas aqui, que podem ser roubadas. Por haver gente que gosta do que é dos outros, tomo o máximo cuidado para que ninguém usurpe as preciosidades alheias. Uma mistura de vergonha e compreensão acalmaram o homem. Vendo-o recuperado para a “jornada”, o velho ajuda-o a levantar.
Nunca imaginei que um lugar como este escondesse objetos tão valiosos. O velho retomou a palavra. Se pensares com calma, verás que a própria condição humana, em sua busca incessante por realizações, nos leva a dois pontos: o que eu sou, e onde eu quero chegar; esquecendo que há um caminho a ser percorrido para que esses pontos um dia, talvez, se liguem. Os objetos aqui guardados nada mais são que objetos que deixamos pelo caminho enquanto nos distraímos olhando para cima, em vez de olharmos para dentro. No fundo, as coisas que perdemos, ou deixamos de lado, são como essas pedras: algo de valor inestimável; nossa humanidade...
O homem, reflexivo, desconfia pela primeira vez do dono do "achados e perdidos". O senhor não é um simples senhor!, desafiou. O velho, com um olhar capcioso riu. Simples eu sou, como podes ver. E não faço a barba porque me dá alergia!, e continuou, mas tenho meus talentos...
O senhor quer dizer que tem uma sabedoria oculta. Uma espécie de magia?!, em outra investida. O velho não se conteve em dar uma risada gostosa: -"Magia? Não, não. Referia-me em ser ótimo no arco e flechas.
- ... 
Porque me olhas assim? Por acaso não posso ser um bom arqueiro?, ironizou o velho. Percebendo que não tiraria mais nada daquela misteriosa figura, o homem acalmou sua ansiedade e deslocou o olhar para o resto da sala. Finalmente um objeto vulgar! Ora, ora, algo simples como um binóculo não deveria estar aqui, disse o visitante.
Não entendo sua surpresa, afinal de contas, estamos numa sala de "achados e perdidos". E saiba que aqui chegam mais binóculos do que guarda-chuvas em tardes de arco-íris. É mesmo?, perguntou o homem. E continuou: "- Achei que o guarda-chuva fosse o campeão, afinal, todos se lembram dele na chuva, mas o esquecem nos dias de sol. Minha mente não consegue entender como um binóculo, de uso tão específico!, pode ser a maioria.
A resposta é muito simples: todos sabem a função do guarda-chuva! Enquanto que o binóculo a maioria das pessoas não sabem para que serve. Mas isso é ridículo!, interrompeu o homem, todos sabem para que serve um binóculo. É para conseguir ver o que se está ao longe!
O velho, colocando dedos em frente aos lábios, tentando segurar outra gargalhada, virou o rosto. Qual é! Está me tirando para idiota? Eu mesmo já tive um. Fui escoteiro saiba o senhor!, falou o homem indignado ao ver sua inteligência posta à prova.
Desculpa-me, meu jovem. Não quis ofendê-lo. Mas acontece que, assim como é o objeto de maior perda, também é o de maior procura. Normalmente,quem vem atrás do seu binóculo, são pessoas que acabaram de entender sua real função. Basicamente são pessoas velhas e frustradas, embora muito ricas, na maioria das vezes.
Não compreendo, disse ao velho. Observando essas pessoas pude entender o seu padrão e, dessa forma, pude perceber para que realmente serve um binóculo. Pausando, o dono do estabelecimento observou seu interlocutor por alguns intantes.
Veja bem. Um binóculo não serve necessariamente para enxergar o que se está ao longe. Ele serve simplesmente para ampliar nossa percepção visual. O ser humano, com toda sua petulância e soberba, não se permite investigar o que se tem por perto. Ele mira seu binóculo para os céus e projeta alcançar o que não lhe compete. Assim, como sempre, não valoriza nem domina o que se encontra embaixo do seu nariz ou entre suas mãos, preferindo entrar numa busca doentia e desenfreada pelo inalcançável. Obviamente, como pude concluir com meus olhos, essas pessoas, embora tenham conquistado tudo o que acreditam ser necessário às suas vidas, percebem-se, quando a morte bate à porta, detentores do mais imenso vazio. Logo, um binóculo não tem serventia alguma para quem quer ter a ilusão de "se estar perto". Ele serve, realmente, para nos fazer enxergar aquilo que não damos importância por achar que já possuímos.
Subitamente o homem tem uma vertigem e cai. Segurando a cabeça entre as mãos ele chora num estado de choque. O velho, com profunda calma e compaixão, senta-se ao lado do visitante e o aconchega cuidadosamente em seu regaço.
Meu jovem, estamos conversando há algum tempo e não disseste o que te trouxe ao hospital. Gostarias de falar a respeito? Com um olhar de ansiedade desesperadora, o homem encara a paternal figura. Creio que não gostaria de compartilhar o que passei com ninguém. Se pudesse, colocaria uma pedra nisso para sempre. Mas, de alguma forma, com o senhor, e neste lugar, talvez eu consiga dividir essa experiência que me perturba. Com o olhar perdido no horizonte o velho medita a respeito da situação. Pelo que vejo não vieste parar aqui por acaso.
O homem, com peso nos lábios, riu. Aqui, pelo que entendi, só vêm parar coisas importantes. Creio que eu não tenha nada de valioso para achar num lugar como este, constatou. Novamente o senhor se engana. Todos temos algo de valor em nossas vidas! O problema é que, quase sempre, descobrimos isso tarde demais, ou olhamos da forma errada. A dor, o sofrimento, são conceitos estabelecidos sob parâmetros humanos. É quando vemos um copo meio vazio em vez de meio cheio. A dor, na verdade, é a ignorância de não entender o amor que a vida é.
E se iniciou um choro de redenção. Minha primeira e única mulher me deixou depois de sete anos. Inconformado, invadi sua casa na noite anterior e a vi com um "amigo" dela. Eles estavam apenas conversando, mas fui tomado por um sentimento de ódio por aquilo tudo. Lembro que saí esbravejando pelo meio da rua e um carro me atropelou.
Depois da declaração veio o suspiro. e o choro foi cessando. O velho, depois de ouvir tudo sem julgamentos, alcançou, ainda sentado, um caleidoscópio. Depois de observá-lo, sorriu.
Um pouco antes de chegares, trouxeram-me este caleidoscópio. Um brinquedo muito sabido que nos ensina que, girando a luneta, podemos criar diferentes realidades e sentidos com as mesmas pedrinhas. Aposto meu minguinho que este objeto precioso seja teu. Com ele, reaprenderás a observar, por diferentes lados, até as situações mais difíceis. Possivelmente, assim que pegares um pouco de prática, voltarás a ver a vida com mais otimismo: como uma criança!
Encantado e sereno depois de ouvir tais palavras, o homem estende os braços e recebe seu objeto perdido: Aquele que transforma o sofrimento em esperança. Agradecido, o visitante abraça o senhor mais simples e sábio que jamais conhecera, e promete para si que não mais perderá seu caleidoscópio.
O homem se levanta, já sem dores ou tonturas, para ir para casa. O velho, porém, antes de deixá-lo ir, convida-o para conhecer sua sala secreta. Os dois se dirigem a um ambiente localizado nos fundos do “achados e perdidos”.
Ao entrar, o homem sente um calor sufocante. A sala compreende um corredor largo onde, à esquerda de quem entra, há uma parede com vários alvos enfileirados; à direta, a parede é lisa. No limite, ao fundo, há um ventilador desligado. O velho, sem dar muita importância à temperatura elevada, alcança seu arco. O homem, por sua vez, caminha em direção ao ventilador e tenta ligá-lo.
Há um mau contato nas tomadas deste lugar e faz com que o ventilador não funcione sempre. Mas, normalmente, quando quero passar o tempo treinando minha pontaria, ele subitamente começa a funcionar e seus ventos interferem no curso das minhas flechas. Como podes ver, somente em uma ocasião os ventos não sopraram e, então, consegui atingir o alvo em cheio. Somente uma flecha! E isso já faz sete anos... Desde então não tive mais êxitos na minha pontaria – informou o velho.
Estranhando aquele arqueiro sem talentos e o absurdo daquela situação, o homem, como num gesto de agradecimento por tudo o que ocorrera com ele naquele lugar, encorajou seu novo amigo a dar mais uma flechada.
Por todo aquele tempo o dono do “achados e perdidos” estivera sereno e seguro, porém, diante daquela situação, o homem pôde ver, enfim, um traço de insegurança e incerteza no rosto do velho.
Não se preocupe, estarei na frente do ventilador. Nada poderá atrapalhar o senhor – disse o homem. Dotado de toda sua força e coragem o velho mira e atira sua flecha.
...
Acordando serenamente na cama do hospital, o homem se depara com uma enfermeira linda. Ele, mesmo imobilizado, sorri. Ela retribui.

O Homem da Cachoeira

Havia um homem que dedicava sua vida inteira a meditar embaixo da cachoeira. Ele deixava a água bater em suas costas enquanto ficava sentado numa pedra com a palma da mão direita apontada para baixo, enquanto a esquerda apontava para cima.
Acreditava que, enquanto ficasse nessa posição, absorvia a energia da Terra com a mão direita e, com a esquerda, a direcionava aos céus, já reciclada. Era um trabalho muito importante, pensava. Já que, através do seu ser, todas as energias impuras (de dor, medo, ódio etc.) podiam ser transmutadas pela sua fé. Dessa forma, todos os excessos eram canalizados cada vez que passavam pelo seu corpo.
Ninguém conhecia o homem. Não tivera, aliás, contato com nenhuma pessoa por sua existência inteira. Mas, mesmo assim, ele dedicava todos os segundos de sua vida a equilibrar a energia dos outros. Não havia reconhecimento ou riquezas em sua jornada, somente sua força inabalável em crer no que sentia ser um propósito correto, mesmo que ninguém lhe tivesse dito isso.
Num dia, com ele já bem velho, a morte surgiu a sua frente. Chegou sua hora, disse ela, pare tudo o que estás fazendo. Sem mexer um músculo do corpo sequer, o homem sorriu sereno. Desculpe minha petulância, sabia dama, mas não vejo ninguém aqui para continuar meu trabalho, respondeu o homem.
A morte sorriu para ele. Dentro de dois anos outro ocupará o seu posto. Homens como você são raros, difíceis de achar. Normalmente, quando essa missão é dada, as pessoas desistem. Pois percebem que deverão abrir mão de todos os prazeres da vida e não serão nem reconhecidas ou aclamadas por isso. É um trabalho que exige muita força e total desprendimento da individualização do ser. Pois se sofre por quem não se conhece, informou a guardiã da vida.
O corpo do homem era, na verdade, tomado por chagas. Estas ardiam e sangravam devido às energias que ele absorvia todos os dias, por todos os segundos. Embora seu espírito as reciclasse, seu corpo padecia às investidas. Estás sobrecarregado. Fizeste mais do que o dobro de sua missão, já que a pessoa escolhida para substituí-lo não teve êxito em seus propósitos iniciais. Peço-lhe desculpas por não ter vindo antes. Pois sei o quanto sofreste em vida, reconheceu a morte.
O homem sorriu. Faz um tempo que não sofro mais. Parei de me importar com isso. Aprendi que se virasse meu pescoço, as dores aumentavam. E que se eu não me focasse na minha missão e divagasse sobre possibilidades não concretas da minha vivência, as dores também aumentavam. Deixei de pensar em bobagens e olhar para os lados e a dor simplesmente sumiu, informou o homem.
O ser humano me surpreende às vezes, mas só quando deixa de ser acomodado, brincou a morte. Vamos¿ Libertar-te-ei do corpo e não haverá mais fraqueza em teu ser. O homem, em sua serenidade inabalável, respondeu: -“Se a senhora me permitir, gostaria de ficar por mais dois anos. Se houver um hiato nesta minha humilde função, os homens se sobrecarregarão e suas vidas ficarão mais difíceis”.
 Esse tempo foi calculado pelo alto como aceitável em sua função. Não deves te preocupar mais com isso. Subirás aos céus e terás tua redenção livre da jornada humana. Santificaste-te. Descansarás guardado no templo dos justos, disse a morte. Agradeço a oferta e fico feliz em saber o que me aguarda do outro lado. Mas não devo morrer enquanto alguém não vier tomar o meu lugar, retrucou o homem.
A morte sorriu novamente. Como quiseres, disse. E sumiu.
O homem refletiu sobre tudo o que ouvira. Nunca esperara algo em troca ou redenção. Simplesmente vivia em sua fé. Mas agora estava certo de seu caminho e de seu futuro. Percebeu-se feliz e radiante. E numa liberdade que nunca se permitira tomar, abaixou seus braços cansados e contemplou o entorno.