Acabara de
receber uma promoção. Por toda sua vida trabalhara na gerência de uma
multinacional automotiva e agora, finalmente, elevaria seu cargo na empresa.
Era a realização de um sonho. A grande meta que traçara estava alcançada. Sua
ansiedade era tanta que não conseguia nem repousar durante aquele vôo noturno
rumo à matriz. Pensava na família; todos estavam radiantes em sua despedida no
aeroporto.
Sua esposa,
que nunca chorava na frente dos outros, soluçava no saguão. Roupas, perfumes,
viagens, jóias! seriam acessíveis agora, com seu
novo status. A filha não parava de falar ao telefone, combinando compras e
eventos da alta sociedade com amigas inacessíveis antigamente. O filho só lhe
disse um “posso encomendar o Viper¿” antes da partida, sem esconder o sorriso. Todos
estavam muito felizes e realizados com a promoção. Obrigado Deus, pensou o
homem.
Pediu um
whisky, já que era possível e, agora, necessário, por estar na primeira classe.
Sentado numa poltrona ultra-confortável e com um ambiente cheio de regalias, o
homem contrastava dos demais passageiros.
Tornara-se poderoso e respeitado. Conquistara aquilo!
Lembrou-se de
seu histórico na empresa. Todas as reuniões, noites sem dormir, projetos,
burocracias, politicagens e, principalmente, de sua maior façanha: o
desenvolvimento do motor mais forte dentre as marcas. Esse fato, inclusive,
rendeu-lhe o apelido de “roncador” dentro da empresa. Finalmente adormeceu,
pensando no quanto abdicara de si, em sua vida inteira, focando-se somente no
trabalho, para que, finalmente, chegasse aquele momento.
Quando acordou
o avião já estava em solo. A comissária abriu-lhe um sorriso e lhe desejou boas
vindas. Agradecendo, o homem se dirigiu à sala de desembarque. Lá o esperavam
dois homens trajando ternos muito finos e gravatas reluzentes. Seja bem vindo,
falaram-lhe em coro. Como foi a viagem¿ indagou o homem de olhos claros.
Tranqüila, muito obrigado, embora o serviço de bordo esteja cada vez pior,
brincou.
Os três
entraram num carro de alto luxo que se encontrava numa das vagas especiais do
aeroporto. De lá, iriam primeiro a um flat, acomodar o viajante, e depois todos
seguiriam à sede da empresa.
O quarto do
homem ficava no último andar da torre mais alta de um conjunto de sete, que
consistia as instalações do flat. No andar térreo havia um cassino, onde
milionários torravam seu dinheiro todos os dias. Mulheres lindas e
elegantíssimas desfilavam seus vestidos e jóias pelo ambiente. Mas sem tempo
para isso, ainda, o homem tratou de acomodar suas bagagens no quarto e tomou um
banho rápido. Na televisão, um programa jornalístico noticiava a queda de um
avião. Enquanto ouvia a notícia sem dar muita importância, arrumava o nó de sua
gravata e empunhava seu relógio.
Antes de sair,
respirou fundo para conter sua euforia, vislumbrando novamente aquele enorme
aposento com móveis banhados a ouro e chão de mármore. Ao bater a porta, a
televisão e as luzes se desligaram automaticamente.
O carro o
esperava em frente à torre. O homem de olhos mais escuros fumava encostado no
capô, enquanto o outro o esperava dentro do automóvel. Se continuares fumando,
vais roncar mais que os motores que eu invento!, brincou, se aproximando.
Impossível senhor, respondeu. E entraram no carro.
O caminho foi
recheado de conversas triviais e sem propósito. Na verdade, o homem pouco
estava interessado em conversas, já que se encontrava ansioso e nervoso diante
da situação de conhecer o criador e representante mundial de toda a estrutura
da qual dedicara sua vida. Ao chegar, foi tomado por um sentimento de surpresa.
É aqui¿, perguntou. Na verdade aqui é simplesmente uma das casas do Lu. A
empresa é muito grande e sua força está nos núcleos ao redor do mundo. A matriz
é somente a geradora de idéias. A sustentação vem das pessoas que trabalham
nela, respondeu o de olho claro, vamos¿ e desceram os três.
Era notável o
desconforto do homem em relação àquela situação. A casa do Lu, o grande chefe
de tudo, não passava de um palacete branco com pilastras que lembravam as da
antiga Grécia. Não havia seguranças ou grandes muros, somente uma fonte onde
anjinhos não paravam de derramar água de seus cântaros. Ele está te esperando,
informou o homem de olhos escuros, ficaremos aqui.
Tentando ainda
se recompor, o homem entrou na casa. Ao vislumbrar o ambiente, pôde ver um
salão redondo luxuosíssimo. Os móveis pareciam franceses, verdadeiras relíquias
históricas; os tapetes eram belíssimos e os mosaicos de vidro davam um ar quase
sobrenatural ao lugar. O que a casa tinha de clareza e sobriedade por fora, era
compensada pelo extremo capricho, riqueza e bom gosto por dentro.
Uma música
vinha de um piano que se encontrava em algum outro ambiente da casa. Quando a
música parou, um pequeno menino cortou o salão e veio ao encontro do homem.
Muito bom dia, senhor “roncador”. Muito bom dia, respondeu o homem, estendendo
a mão à da criança. Meu pai disse que, quando eu crescer, terei um carro com um
motor igual ao que o senhor criou. Lisonjeado, abrindo um sorriso paternal,
respondeu: -“Eu espero que sim”. Eram palavras muito significativas, afinal,
seu trabalho era reconhecido inclusive pelo filho do dono da empresa.
Antes mesmo
dos dois continuarem algum diálogo, o som de passos cortou o breve silêncio. Ao
alto da escadaria, um senhor, nem tão velho assim, vestindo um smoking branco e
fumando um charuto, fez as honras: -”Seja bem vindo, famoso roncador. É um
prazer conhecê-lo”, e desceu. O prazer é todo meu, Lu.
Os homens se
cumprimentaram e se acomodaram nos sofás. Sente-se aqui, meu filho, o papai
precisa conversar com esse moço, disse. Servindo-se de um chá previamente
preparado para o encontro, o grande chefe não fez cerimônias.
Seus trabalhos
não passaram despercebidos por mim. Há anos tenho o observado e admirado seus
esforços em prol dos ideais da empresa. Fico muito contente e satisfeito quando
as sementes por mim plantadas dão frutos tão visíveis como no seu caso. O
melhor ainda, é que mesmo com a influência e poder que o senhor alcançou
trabalhando para mim, manteve-se fiel aos meus propósitos. Sua retidão é admirável!
Agradeço seus
elogios, Lu. Sempre fui um homem com grandes pretensões. Vi na sua empresa uma
possibilidade de crescimento pessoal e financeiro e agarrei com unhas e dentes.
Não queria viver em dificuldades, sem poder realizar os meus sonhos e os da
minha família. Ser mais um nunca fez parte dos meus planos.
O poderoso
homem ouvia com atenção as palavras do outro enquanto tragava a fumaça de seu
charuto. Seus olhos não conseguiam esconder seu entusiasmo. Vejo que é a pessoa
certa para o posto. O senhor tem todos os atributos para ser um grande líder.
Por isso, gostaria de contar um pouco da minha história e de como montei essa
empresa. Tomando um breve gole de chá, Lu inicia seu relato:
- Quando era
jovem, há muito tempo atrás, observando a vida do ser humano, percebi que eu
não me adequava ao modo de convivência das pessoas. Achava-as muito passivas e
indefesas. Eram muito reféns de sua própria ignorância e das coisas da
natureza. Aquela realidade trazia empecilhos para mim, pois não me achava livre
e dependia dos outros para sobreviver. As realizações só vinham com muito custo
e tudo era compartilhado, ao ponto de ficar muito pouco para cada indivíduo.
Mas eu queria mais. Por isso, decidi sair do meu povoado e daquela realidade
que tanto me descontentava.
No começo foi
muito difícil, pois teria de conquistar habilidades que eram de
responsabilidade de outras pessoas. Por exemplo: tive que aprender a caçar, já
que estava cansado de comer as plantas que cultivava, aliás, esta era a minha
função no povoado. Embora tivesse fartura de vegetais, outras opções de
alimento me faltavam. E em pouco tempo virei um exímio caçador de cordeiros.
Depois de já
adaptado àquela vida, percebi-me feliz, pois havia fartura e opções de consumo
para mim. Entendi, num dia sentado embaixo de uma árvore, que minha felicidade advinha
da minha capacidade de manipular e criar minha realidade. Refleti muito e constatei
que a realização do ser humano estava intimamente ligada ao poder. Sozinho,
passei, então, a subjugar os cordeiros que caçava. Em pouco tempo tinha um
rebanho enorme de criaturas que dependiam de mim para manter suas vidas. O
cercado impedia que o rebanho pudesse se alimentar naturalmente e fazia com que
eu fosse sua única forma de sobrevivência. Então, vi-me poderoso quando tirei a
liberdade deles e os dei a ilusão de que eu era sua única fonte de alimento.
O homem estava
impressionado com a história de seu chefe. Perdia-se em conjeturas, mas não
conseguia nem imaginar a idade daquele senhor. Será que vivera numa sociedade
atrasada¿ Onde seria esse povoado¿ Que inteligência a daquele homem sentado a
sua frente! Serviu-se de chá enquanto o Lu continuava seu relato:
- Depois de
uns anos, retornei ao meu antigo povoado vendendo a carne mais saborosa e as
roupas de pelagem de maior qualidade que eles já haviam visto. Obviamente
lucrei muito com isso, me ofereceram seus melhores produtos e suas melhores
casas em troca da minha mercadoria. Tornei-me cada vez mais poderoso perante
aqueles homens conforme eles dependiam cada vez mais dos meus produtos.
Como pode ver,
meu querido roncador, pouco a pouco, todos os habitantes do lugar reconstruíram
seu modo de viver baseado nos meus parâmetros.
Depois de um
tempo, cansei de criar cordeiros e passei a criar cavalos. E depois, quando
todo o mercado estava sob meus domínios, passei a criar idéias, e assim, a
cultivar humanos.
Um frio
percorreu a espinha do homem. Aquilo, colocado de uma forma tão fria e segura,
gerava uma sensação de estranheza e admiração pela figura do chefe. Aquilo era
realmente certo¿, pensou. O Lu, ao perceber o confronto interno transparecido
nos olhos de seu interlocutor, sorriu. Calma, não sou um homem mau.
Simplesmente não sou hipócrita. No fundo, todos buscam a felicidade e não sabem
onde encontrá-la. Eu, basicamente, traduzo esse anseio em produtos que, por um
tempo limitado, cumprem essa função. E, estando sempre um passo a frente de
todos, quando a carência bate novamente a porta do ser humano, lá estou eu com
uma nova projeção de felicidade sob forma de produto.
A noite e o
frio chegavam à casa. Passou tanto tempo ouvindo aqueles relatos que perdeu a
noção do horário. Gostaria que ficasse para o jantar, roncador, a comida da
Dora é maravilhosa. Ô se é!, interrompeu o menino. Agradeço a oferta,Lu, assim
poderei continuar ouvindo sua história e podemos conversar a respeito da minha
nova função também.
Os três se
levantaram e se dirigiram à sala de jantar. Mesmo reflexivo, o homem não pôde
deixar de notar a beleza do enorme lustre acima da mesa. Gostou¿, devo tê-lo há
mais de séculos!, brincou o chefe que não deixava passar nada despercebido por
seus olhos. Assim que sentaram, Dora, uma linda mulher de cabelos longos e
negros, trouxe a refeição numa louça de prata. Abrindo a tampa, o cheiro do
cordeiro invadiu o ambiente. Hum!, exclamou a criança, adoro esse prato! Eu
também, meu filho. Embora eu seja suspeito para falar de qualquer coisa que a
Dora faça.
Agradecendo ao
patrão, a mulher trouxe o vinho e serviu os cavalheiros da mesa. O menino foi
servido de água. Ao provar da carne o homem não conseguiu esconder seu
encantamento. Essa é a carne mais deliciosa que eu já comi em toda a minha
vida!Juro! Lu deu uma risada alta. Eu não te falei, ela é uma cozinheira de mão
cheia! Embora, devo confessar, eu a ajude um pouquinho em trazer a carne mais
macia que já vira. E qual seria o segredo para ter uma carne como essa¿,
perguntou o homem. Lu chegou perto, aproximando-se, como quem contasse algo
muito valioso: - “O segredo é dopar os cordeiros antes do abate. Assim, quando
se dão conta, já estão mortos”. E os dois gargalharam na mesa.
Filho, essa
carne não esta maravilhosa¿ O menino, de boca cheia, sorriu e balançou a cabeça
afirmativamente. Esta vendo, roncador, o que seduz uma criança seduz o mundo
inteiro, de uma forma ou de outra!, constatou. Já te falei que também tenho
empresas no ramo de brinquedos¿ ... Pois é, a automobilística é somente um dos
meus ramos de atuação. Tenho participação em empresas de petróleo, farmácia,
eletrônicos, moda, entretenimento, alimentos, além de bancos e da mídia, claro.
O homem quase
se engasgou com o vinho. Possivelmente estava jantando com um dos homens mais
poderosos e influentes do mundo. Se não o maior! Lu, eu estou lisonjeado em
poder conhecer um homem como o senhor e ter a sua confiança, disse o homem.
Tudo o que projetara com aquela promoção poderia ser multiplicado por mil, por
um milhão (!). Não se subestime, roncador. Graças ao seu invento eu dominarei o
mercado de automóveis. E graças ao seu ronco, eu venderei mais petróleo, porque
aumentará o consumo de combustível. Isso dará a ilusão de força e poder aos
homens e, assim, colocando algumas figuras de Hollywood defendendo minha marca,
poderei influenciar nas tendências comportamentais humanas e lucrar bilhões com
seu invento.
O brilho nos
olhos do homem podia ser contemplado há quilômetros. Aquilo era muito poder. O
Lu era um visionário e sabia manipular a humanidade conforme sua vontade. E
ele, um simples mortal, estaria ao seu lado nessa empreitada. Alias, sempre
estivera, mesmo sem perceber; toda a humanidade, inclusive! Todos os inventos,
todas as teorias, todos os governos, absolutamente todos trabalhavam direta ou
indiretamente para aquele homem que se lambuzava com a carne de cordeiro.
Quem é você,
Lu¿ Como pode ter tanto poder¿, indagou. Eu sou aquele que preenche a carência
humana com suas próprias criações. Eu sou o reflexo de suas fraquezas, de suas
angústias, de seus anseios, de seus descontentamentos: de sua própria
ignorância. Eu estou em todas as vertentes do ego, aquele que crê que o ser
humano pode ser Deus. E vendo essa panacéia de ilusões a preços caros, pois as
pessoas passam a viver sob minhas regras, que estão longe da perfeição. E dando
relativa liberdade aos seres, eu lhes dou a possibilidade, a todo o instante,
da escolha, que sempre acaba pendendo para o lado do orgulho: para os meus
domínios, respondeu o chefe.
Mas isso é
heresia!, exclamou o homem. Eu sou um simples comerciante. Um sujeito
oportunista que está na hora certa e no lugar certo, pronto para vender o
máximo que eu posso criar: uma simples ilusão. Como eu lhe disse antes, não sou
um homem mau, pois não obrigo ninguém a nada. Creio que eu seja mais um vizinho
bom: aquele que parece que não existe, mas sempre estende os braços quando você
bate à porta. E também não sou nenhuma figura superior. Sou humano, pois não
dou nada a ninguém. Eu vendo!, declarou o Lu.
Aquelas
palavras atingiram em cheio o homem. Por todas as suas ações, ficara íntimo
daquele que se permitia ser chamado por ele apenas de “Lu”. Veio o choro e veio
o desespero. O homem caiu da cadeira em posição fetal e gritou. Culpa, dor e
desespero invadiram sua mente. O Lu e a criança terminavam a refeição em
silêncio, como se ignorassem a situação. Toda a projeção daquela sala de jantar
ruiu, dando espaço a um palácio negro e gelado. A solidão tomou conta de tudo.
O homem,
finalmente, como sempre buscou, estava individualizado.
...
Dentre os
destroços do avião, no fundo do mar, jazia o corpo do homem.