domingo, 9 de outubro de 2011

A Casa do Lu



Acabara de receber uma promoção. Por toda sua vida trabalhara na gerência de uma multinacional automotiva e agora, finalmente, elevaria seu cargo na empresa. Era a realização de um sonho. A grande meta que traçara estava alcançada. Sua ansiedade era tanta que não conseguia nem repousar durante aquele vôo noturno rumo à matriz. Pensava na família; todos estavam radiantes em sua despedida no aeroporto. 
Sua esposa, que nunca chorava na frente dos outros, soluçava no saguão. Roupas, perfumes, viagens, jóias! seriam acessíveis agora, com seu novo status. A filha não parava de falar ao telefone, combinando compras e eventos da alta sociedade com amigas inacessíveis antigamente. O filho só lhe disse um “posso encomendar o Viper¿” antes da partida, sem esconder o sorriso. Todos estavam muito felizes e realizados com a promoção. Obrigado Deus, pensou o homem.
Pediu um whisky, já que era possível e, agora, necessário, por estar na primeira classe. Sentado numa poltrona ultra-confortável e com um ambiente cheio de regalias, o homem contrastava dos demais passageiros. Tornara-se poderoso e respeitado. Conquistara aquilo!
Lembrou-se de seu histórico na empresa. Todas as reuniões, noites sem dormir, projetos, burocracias, politicagens e, principalmente, de sua maior façanha: o desenvolvimento do motor mais forte dentre as marcas. Esse fato, inclusive, rendeu-lhe o apelido de “roncador” dentro da empresa. Finalmente adormeceu, pensando no quanto abdicara de si, em sua vida inteira, focando-se somente no trabalho, para que, finalmente, chegasse aquele momento.
Quando acordou o avião já estava em solo. A comissária abriu-lhe um sorriso e lhe desejou boas vindas. Agradecendo, o homem se dirigiu à sala de desembarque. Lá o esperavam dois homens trajando ternos muito finos e gravatas reluzentes. Seja bem vindo, falaram-lhe em coro. Como foi a viagem¿ indagou o homem de olhos claros. Tranqüila, muito obrigado, embora o serviço de bordo esteja cada vez pior, brincou.
Os três entraram num carro de alto luxo que se encontrava numa das vagas especiais do aeroporto. De lá, iriam primeiro a um flat, acomodar o viajante, e depois todos seguiriam à sede da empresa.
O quarto do homem ficava no último andar da torre mais alta de um conjunto de sete, que consistia as instalações do flat. No andar térreo havia um cassino, onde milionários torravam seu dinheiro todos os dias. Mulheres lindas e elegantíssimas desfilavam seus vestidos e jóias pelo ambiente. Mas sem tempo para isso, ainda, o homem tratou de acomodar suas bagagens no quarto e tomou um banho rápido. Na televisão, um programa jornalístico noticiava a queda de um avião. Enquanto ouvia a notícia sem dar muita importância, arrumava o nó de sua gravata e empunhava seu relógio.
Antes de sair, respirou fundo para conter sua euforia, vislumbrando novamente aquele enorme aposento com móveis banhados a ouro e chão de mármore. Ao bater a porta, a televisão e as luzes se desligaram automaticamente.
O carro o esperava em frente à torre. O homem de olhos mais escuros fumava encostado no capô, enquanto o outro o esperava dentro do automóvel. Se continuares fumando, vais roncar mais que os motores que eu invento!, brincou, se aproximando. Impossível senhor, respondeu. E entraram no carro.
O caminho foi recheado de conversas triviais e sem propósito. Na verdade, o homem pouco estava interessado em conversas, já que se encontrava ansioso e nervoso diante da situação de conhecer o criador e representante mundial de toda a estrutura da qual dedicara sua vida. Ao chegar, foi tomado por um sentimento de surpresa. É aqui¿, perguntou. Na verdade aqui é simplesmente uma das casas do Lu. A empresa é muito grande e sua força está nos núcleos ao redor do mundo. A matriz é somente a geradora de idéias. A sustentação vem das pessoas que trabalham nela, respondeu o de olho claro, vamos¿ e desceram os três.
Era notável o desconforto do homem em relação àquela situação. A casa do Lu, o grande chefe de tudo, não passava de um palacete branco com pilastras que lembravam as da antiga Grécia. Não havia seguranças ou grandes muros, somente uma fonte onde anjinhos não paravam de derramar água de seus cântaros. Ele está te esperando, informou o homem de olhos escuros, ficaremos aqui.
Tentando ainda se recompor, o homem entrou na casa. Ao vislumbrar o ambiente, pôde ver um salão redondo luxuosíssimo. Os móveis pareciam franceses, verdadeiras relíquias históricas; os tapetes eram belíssimos e os mosaicos de vidro davam um ar quase sobrenatural ao lugar. O que a casa tinha de clareza e sobriedade por fora, era compensada pelo extremo capricho, riqueza e bom gosto por dentro.
Uma música vinha de um piano que se encontrava em algum outro ambiente da casa. Quando a música parou, um pequeno menino cortou o salão e veio ao encontro do homem. Muito bom dia, senhor “roncador”. Muito bom dia, respondeu o homem, estendendo a mão à da criança. Meu pai disse que, quando eu crescer, terei um carro com um motor igual ao que o senhor criou. Lisonjeado, abrindo um sorriso paternal, respondeu: -“Eu espero que sim”. Eram palavras muito significativas, afinal, seu trabalho era reconhecido inclusive pelo filho do dono da empresa.
Antes mesmo dos dois continuarem algum diálogo, o som de passos cortou o breve silêncio. Ao alto da escadaria, um senhor, nem tão velho assim, vestindo um smoking branco e fumando um charuto, fez as honras: -”Seja bem vindo, famoso roncador. É um prazer conhecê-lo”, e desceu. O prazer é todo meu, Lu.
Os homens se cumprimentaram e se acomodaram nos sofás. Sente-se aqui, meu filho, o papai precisa conversar com esse moço, disse. Servindo-se de um chá previamente preparado para o encontro, o grande chefe não fez cerimônias.
Seus trabalhos não passaram despercebidos por mim. Há anos tenho o observado e admirado seus esforços em prol dos ideais da empresa. Fico muito contente e satisfeito quando as sementes por mim plantadas dão frutos tão visíveis como no seu caso. O melhor ainda, é que mesmo com a influência e poder que o senhor alcançou trabalhando para mim, manteve-se fiel aos meus propósitos. Sua retidão é admirável!
Agradeço seus elogios, Lu. Sempre fui um homem com grandes pretensões. Vi na sua empresa uma possibilidade de crescimento pessoal e financeiro e agarrei com unhas e dentes. Não queria viver em dificuldades, sem poder realizar os meus sonhos e os da minha família. Ser mais um nunca fez parte dos meus planos.
O poderoso homem ouvia com atenção as palavras do outro enquanto tragava a fumaça de seu charuto. Seus olhos não conseguiam esconder seu entusiasmo. Vejo que é a pessoa certa para o posto. O senhor tem todos os atributos para ser um grande líder. Por isso, gostaria de contar um pouco da minha história e de como montei essa empresa. Tomando um breve gole de chá, Lu inicia seu relato:
- Quando era jovem, há muito tempo atrás, observando a vida do ser humano, percebi que eu não me adequava ao modo de convivência das pessoas. Achava-as muito passivas e indefesas. Eram muito reféns de sua própria ignorância e das coisas da natureza. Aquela realidade trazia empecilhos para mim, pois não me achava livre e dependia dos outros para sobreviver. As realizações só vinham com muito custo e tudo era compartilhado, ao ponto de ficar muito pouco para cada indivíduo. Mas eu queria mais. Por isso, decidi sair do meu povoado e daquela realidade que tanto me descontentava.
No começo foi muito difícil, pois teria de conquistar habilidades que eram de responsabilidade de outras pessoas. Por exemplo: tive que aprender a caçar, já que estava cansado de comer as plantas que cultivava, aliás, esta era a minha função no povoado. Embora tivesse fartura de vegetais, outras opções de alimento me faltavam. E em pouco tempo virei um exímio caçador de cordeiros.
Depois de já adaptado àquela vida, percebi-me feliz, pois havia fartura e opções de consumo para mim. Entendi, num dia sentado embaixo de uma árvore, que minha felicidade advinha da minha capacidade de manipular e criar minha realidade. Refleti muito e constatei que a realização do ser humano estava intimamente ligada ao poder. Sozinho, passei, então, a subjugar os cordeiros que caçava. Em pouco tempo tinha um rebanho enorme de criaturas que dependiam de mim para manter suas vidas. O cercado impedia que o rebanho pudesse se alimentar naturalmente e fazia com que eu fosse sua única forma de sobrevivência. Então, vi-me poderoso quando tirei a liberdade deles e os dei a ilusão de que eu era sua única fonte de alimento.
O homem estava impressionado com a história de seu chefe. Perdia-se em conjeturas, mas não conseguia nem imaginar a idade daquele senhor. Será que vivera numa sociedade atrasada¿ Onde seria esse povoado¿ Que inteligência a daquele homem sentado a sua frente! Serviu-se de chá enquanto o Lu continuava seu relato:
- Depois de uns anos, retornei ao meu antigo povoado vendendo a carne mais saborosa e as roupas de pelagem de maior qualidade que eles já haviam visto. Obviamente lucrei muito com isso, me ofereceram seus melhores produtos e suas melhores casas em troca da minha mercadoria. Tornei-me cada vez mais poderoso perante aqueles homens conforme eles dependiam cada vez mais dos meus produtos.
Como pode ver, meu querido roncador, pouco a pouco, todos os habitantes do lugar reconstruíram seu modo de viver baseado nos meus parâmetros.
Depois de um tempo, cansei de criar cordeiros e passei a criar cavalos. E depois, quando todo o mercado estava sob meus domínios, passei a criar idéias, e assim, a cultivar humanos.
Um frio percorreu a espinha do homem. Aquilo, colocado de uma forma tão fria e segura, gerava uma sensação de estranheza e admiração pela figura do chefe. Aquilo era realmente certo¿, pensou. O Lu, ao perceber o confronto interno transparecido nos olhos de seu interlocutor, sorriu. Calma, não sou um homem mau. Simplesmente não sou hipócrita. No fundo, todos buscam a felicidade e não sabem onde encontrá-la. Eu, basicamente, traduzo esse anseio em produtos que, por um tempo limitado, cumprem essa função. E, estando sempre um passo a frente de todos, quando a carência bate novamente a porta do ser humano, lá estou eu com uma nova projeção de felicidade sob forma de produto.
A noite e o frio chegavam à casa. Passou tanto tempo ouvindo aqueles relatos que perdeu a noção do horário. Gostaria que ficasse para o jantar, roncador, a comida da Dora é maravilhosa. Ô se é!, interrompeu o menino. Agradeço a oferta,Lu, assim poderei continuar ouvindo sua história e podemos conversar a respeito da minha nova função também.
Os três se levantaram e se dirigiram à sala de jantar. Mesmo reflexivo, o homem não pôde deixar de notar a beleza do enorme lustre acima da mesa. Gostou¿, devo tê-lo há mais de séculos!, brincou o chefe que não deixava passar nada despercebido por seus olhos. Assim que sentaram, Dora, uma linda mulher de cabelos longos e negros, trouxe a refeição numa louça de prata. Abrindo a tampa, o cheiro do cordeiro invadiu o ambiente. Hum!, exclamou a criança, adoro esse prato! Eu também, meu filho. Embora eu seja suspeito para falar de qualquer coisa que a Dora faça.
Agradecendo ao patrão, a mulher trouxe o vinho e serviu os cavalheiros da mesa. O menino foi servido de água. Ao provar da carne o homem não conseguiu esconder seu encantamento. Essa é a carne mais deliciosa que eu já comi em toda a minha vida!Juro! Lu deu uma risada alta. Eu não te falei, ela é uma cozinheira de mão cheia! Embora, devo confessar, eu a ajude um pouquinho em trazer a carne mais macia que já vira. E qual seria o segredo para ter uma carne como essa¿, perguntou o homem. Lu chegou perto, aproximando-se, como quem contasse algo muito valioso: - “O segredo é dopar os cordeiros antes do abate. Assim, quando se dão conta, já estão mortos”. E os dois gargalharam na mesa.
Filho, essa carne não esta maravilhosa¿ O menino, de boca cheia, sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. Esta vendo, roncador, o que seduz uma criança seduz o mundo inteiro, de uma forma ou de outra!, constatou. Já te falei que também tenho empresas no ramo de brinquedos¿ ... Pois é, a automobilística é somente um dos meus ramos de atuação. Tenho participação em empresas de petróleo, farmácia, eletrônicos, moda, entretenimento, alimentos, além de bancos e da mídia, claro.
O homem quase se engasgou com o vinho. Possivelmente estava jantando com um dos homens mais poderosos e influentes do mundo. Se não o maior! Lu, eu estou lisonjeado em poder conhecer um homem como o senhor e ter a sua confiança, disse o homem. Tudo o que projetara com aquela promoção poderia ser multiplicado por mil, por um milhão (!). Não se subestime, roncador. Graças ao seu invento eu dominarei o mercado de automóveis. E graças ao seu ronco, eu venderei mais petróleo, porque aumentará o consumo de combustível. Isso dará a ilusão de força e poder aos homens e, assim, colocando algumas figuras de Hollywood defendendo minha marca, poderei influenciar nas tendências comportamentais humanas e lucrar bilhões com seu invento.
O brilho nos olhos do homem podia ser contemplado há quilômetros. Aquilo era muito poder. O Lu era um visionário e sabia manipular a humanidade conforme sua vontade. E ele, um simples mortal, estaria ao seu lado nessa empreitada. Alias, sempre estivera, mesmo sem perceber; toda a humanidade, inclusive! Todos os inventos, todas as teorias, todos os governos, absolutamente todos trabalhavam direta ou indiretamente para aquele homem que se lambuzava com a carne de cordeiro.
Quem é você, Lu¿ Como pode ter tanto poder¿, indagou. Eu sou aquele que preenche a carência humana com suas próprias criações. Eu sou o reflexo de suas fraquezas, de suas angústias, de seus anseios, de seus descontentamentos: de sua própria ignorância. Eu estou em todas as vertentes do ego, aquele que crê que o ser humano pode ser Deus. E vendo essa panacéia de ilusões a preços caros, pois as pessoas passam a viver sob minhas regras, que estão longe da perfeição. E dando relativa liberdade aos seres, eu lhes dou a possibilidade, a todo o instante, da escolha, que sempre acaba pendendo para o lado do orgulho: para os meus domínios, respondeu o chefe.
Mas isso é heresia!, exclamou o homem. Eu sou um simples comerciante. Um sujeito oportunista que está na hora certa e no lugar certo, pronto para vender o máximo que eu posso criar: uma simples ilusão. Como eu lhe disse antes, não sou um homem mau, pois não obrigo ninguém a nada. Creio que eu seja mais um vizinho bom: aquele que parece que não existe, mas sempre estende os braços quando você bate à porta. E também não sou nenhuma figura superior. Sou humano, pois não dou nada a ninguém. Eu vendo!, declarou o Lu.
Aquelas palavras atingiram em cheio o homem. Por todas as suas ações, ficara íntimo daquele que se permitia ser chamado por ele apenas de “Lu”. Veio o choro e veio o desespero. O homem caiu da cadeira em posição fetal e gritou. Culpa, dor e desespero invadiram sua mente. O Lu e a criança terminavam a refeição em silêncio, como se ignorassem a situação. Toda a projeção daquela sala de jantar ruiu, dando espaço a um palácio negro e gelado. A solidão tomou conta de tudo.
O homem, finalmente, como sempre buscou, estava individualizado.
...
Dentre os destroços do avião, no fundo do mar, jazia o corpo do homem.

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